Deus
Ahmed Kathrada, sul-africano de origem indiana, dirigente do ANC, que passou 26 anos preso e deixou Pollsmore cinco meses antes da libertação de Nelson Mandela, era um senhor simpático que noutro tempo e lugar lembraria um advogado lisboeta do reviralho na tertúlia de Aquilino Ribeiro ao fim da tarde na Bertrand. Quando nos conhecemos à sua saída da cadeia informou-me de que era comunista; com efeito, por comunista o tinham prendido em 1963. No Outono de 1989, porém, soou-me como se me tivesse dito que era vegetariano.
Porque nessa altura, depois de por sete décadas ter imposto a milhões de seres humanos o seu jugo desumanizante e ter sido para outros uma ameaça (ou um conto do vigário), o comunismo perdera veleidades de mando na cidade e no mundo, não só na Rússia, que fora a Roma da sua fé, mas também em muitos outros lugares e passara a ser apenas uma regra de vida privada, para não dizer um hóbi (não fora esse o caso, de resto, o senhor Kathrada não teria sido libertado). Acontecera-lhe o que tinha acontecido antes às confissões cristãs com a separação da Igreja do Estado. E como a crença no comunismo tinha muito de crença religiosa, o seu desfalecimento prometia alargar o espaço de tolerância e de razão que a humanidade fora conseguindo abrir desde a Revolução Francesa e a revolução industrial. Infelizmente não sei se tal promessa se irá cumprir.
Lembrei-me de Ahmed Kathrada e do fim do poder comunista por contraste com a reafirmação crescente de poder das igrejas cristãs, sobretudo nos Estados Unidos, onde eleitores evangélicos têm enchido o funcionalismo de beatos e beatas, condicionam a política de Washington quanto a Israel, a investigação científica e programas de planeamento familiar no Terceiro Mundo; onde quem não for cristão praticante escusa de pensar em ser presidente, senador, congressista ou sequer vereador de câmara; onde cada candidato à Casa Branca diz ter mais (e melhor) devoção do que os outros. Mas o bicho também morde na Europa céptica: recentemente no Vaticano, Nicolas Sarkozy enalteceu de tal maneira as raízes cristãs da França, filha mais velha da Igreja de Roma, que deixou alarmados 'espíritos fortes' seus compatriotas; o cartão (electrónico) de votos para o Natal e Ano Novo de um "think tank" de relações internacionais português com impecáveis credenciais científicas e políticas traz este ano a citação seguinte de Platão: 'Deus, não o homem, é a medida de todas as coisas'.
Fora de portas, a gente sabia da teocracia xiita do Irão e da ambição teocrática sunita da Al-Qaeda, que embora incomodem bastante não espantam muito. Com menos seis séculos do que o cristianismo, o Islão tem sangue de mais na guelra; além disso, desde o século XIV que proíbe liberdade de pensamento e investigação. Portas adentro é que nem toda a gente estaria à espera, mas parece que Deus está a chegar também. E, como me contaram na noite de Ano Bom que o Professor Adriano Moreira dissera há tempos, vem zangado.
José Cutileiro