O pianista
Olho para a fotografia e nela estão três miúdos num quarto e a sua mãe. Eles rebolam-se pelos cantos, atraídos pela máquina que vai disparando e, ao mesmo tempo, dela envergonhados. A mãe procura pô-los na ordem sem sucesso, e também sem insistir. Afinal, os dois estrangeiros que se tinham deslocado à sua casa pareciam estar ali por boas razões.
De facto, nós visitávamos o que hoje sobra do campo de refugiados palestinianos de Nahr El Bared. Desta vez, não foram os israelitas, mas o Exército libanês. Nahr El Bared era o maior dos campos de refugiados do Norte do país dos cedros. Mais de 30 mil palestinianos viviam aí. Falamos, portanto, de uma cidade. O Exército cercou e destruiu o campo, numa guerra que demorou meses, por aí se ter entrincheirado um grupo terrorista ligado à Al Qaeda.
Nessa guerra sem quartel, as cinco mil famílias que aí viviam perderam todos os seus haveres e fugiram como puderam. As condições em que hoje se encontram, apesar da ajuda internacional de emergência, são pavorosas.
Em muitos anos de viagem, nunca vi nada de parecido. Visitei os campos de Gaza e o betão esventrado impressionou-me tanto quanto a tragédia de quantos o habitavam. Visitei Kunetra, a cidade síria dos Golã que os israelitas arrasaram. Ou o castigado Sul do Líbano. Mas nada como Nahr El Bared.
Como Nahr El Bared só vi em filme e em fotografias antigas. Este campo é atravessado por uma única avenida, de Sul para Norte. À sua volta, de um lado e de outro, cresceu o habitual labirinto de casas e ruelas dos campos palestinianos. Nenhuma, mesmo nenhuma, resistiu às centenas de milhares de rockets e bombas que o Exército sobre elas lançou. Não pudemos entrar no núcleo central do campo, ainda hoje guardado pelos militares. Mas pudemos ver, de um lado e de outro, o dantesco cenário. Lembram-se do momento em que o pianista de Sidney Pollack salta o muro e descobre uma avenida de casas inteiramente reduzidas a escombros? Assim é a rua central de Nahr El Bared. Rodeámos depois toda a Medina. E de todos os lados o cenário era o mesmo.
De Hiroshima, fica a memória do cogumelo, mais do que a redução do orgulho dos homens a pó. Nahr El Bared parece-se mais com as fotografias de Berlim no fim da II Guerra Mundial. Ou de Estalinegrado. Como se o tempo tivesse recuado mais de meio século e ainda fosse possível uma guerra das antigas. É possível, garanto. E não é bonito de ver. Muito em particular se praticada pelos bons contra os maus.
Há narrativas que exigem um fim feliz. É por isso que acabo por onde comecei. A vergonha sorridente dos miúdos – que revejo de novo – é o meu fim cor-de-rosa. É piroso? Que seja. Há momentos na vida em que só a felicidade de um momento irrepetível pode compensar a raiva que cresce cá dentro.
Publicado por MiguelPortas | 1 Comentário(s)