O mundo 'pós-americano'
8:00 | Segunda-feira, 4 de Fev de 2008
Em Portland, EUA, um painel electrónico faz a contagem decrescente para o fim da presidência Bush
As primárias norte-americanas têm suscitado imenso interesse nos países europeus. Uma parte muito substancial deste interesse está associada ao final da Administração W. Bush. Para muitos europeus, esta administração foi uma aberração política e militar. Estes europeus vêem nas primárias a melhor prova de que a América, especialmente se liderada por Hillary Clinton ou Barack Obama, está finalmente de volta. O regresso anunciado de uma América mais normal e previsível permitirá restaurar a harmonia euro-atlântica e ajudará a estabilizar a situação internacional. Esta visão é popular nos cafés, universidades e gabinetes ministeriais do Velho Continente. É também uma visão errada.
O principal problema dos europeus é pensar que pouco ou nada mudou no mundo desde que um célebre editorial do 'Economist' em 1999 proclamou: "Os Estados Unidos estendem-se pelo globo como um colosso. Dominam os negócios, o comércio e as comunicações; a sua economia é a mais bem sucedida do mundo, os seus militares melhores do que ninguém". As primárias americanas, com todas as suas promessas internas e propostas políticas externas estão a criar a ilusão de que pouco ou nada mudou no mundo desde que a revista inglesa escreveu estas linhas há quase dez anos. Na base desta ilusão europeia está o desejo de abolir a presidência de George W. Bush e de regressar a 1999. O problema é que esta ilusão não toma em conta uma série de importantes mudanças políticas, económicas e tecnológicas. Regressar a 1999 e ao período áureo da "pax americana" é impossível. Como Fareed Zakaria, editor da 'Newsweek International', explica num livro a publicar em Maio, já estamos a viver num mundo "pós-americano".
No mundo 'pós-americano', os EUA terão crescentes dificuldades em manter a hegemonia que adquiriram em 1991, após o final da Guerra Fria e o colapso da União Soviética. Se olharmos para os últimos duzentos anos, vemos que não há nenhum exemplo de uma hegemonia semelhante. Entre o início do século XIX e 1945 a arquitectura mundial foi sempre multipolar. Entre 1945 e 1991 foi bipolar. Desde então tem sido unipolar. Unipolar acima de tudo porque os EUA tiveram os meios e a vontade política de exercer um papel hegemónico no sistema internacional. Daqui para a frente, será mais complicado a Washington exercer este papel da mesma maneira. Acima de tudo por duas razões. A primeira está relacionada com questões internas. A segunda com a entrada de praticamente toda a Ásia na economia internacional.
Do ponto de vista interno, a próxima administração americana terá de dedicar muito mais tempo e atenção a reformas nas áreas da educação, saúde, segurança social, ambiente, infra-estruturas, energia, inovação, ciência e tecnologia. O processo de decisão político e burocrático terá de ser repensado e a sanidade orçamental e fiscal tem de regressar a Washington após uns anos de irresponsabilidade. Esta agenda política exigirá tempo, capital e difíceis compromissos políticos. Do ponto de vista externo, o regresso da Ásia à primeira e segunda divisão mundial assinala o início de uma nova distribuição do poder a nível internacional.
Esta nova situação terá enormes consequências para os membros da União Europeia. Ao longo das últimas décadas, os europeus viveram no melhor dos mundos. Tal garantiu aos europeus importantes direitos e muito poucas responsabilidades externas. Agora, todavia, se quisermos continuar a ser ricos, a viver bem e a tirar partido do comércio internacional teremos de desempenhar um papel muito mais activo na luta contra as forças da fragmentação - proliferação nuclear, guerra entre países desenvolvidos, terrorismo islamista, proteccionismo, estabilização e reconstrução de quase-estados - que ameaçam aquilo que é decisivo para nós. O mundo 'pós-americano' será um mundo muito exigente para os europeus do ponto de vista estratégico. Será que as opiniões públicas europeias estão armadas do ponto de vista político e moral para este mundo?
Ciência e tecnologia
O que é que Vannevar Bush diria? Bush (1890-1974) foi director do Gabinete de Investigação Científica e Desenvolvimento dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. A ciência e a tecnologia mostraram-se cruciais para a vitória americana na guerra contra a Alemanha nazi e o Japão. Como Vannevar Bush observou, "uma nação que depende dos outros para o seu conhecimento científico básico será lenta no seu progresso industrial e fraca na sua posição competitiva". Desde então a ciência e a tecnologia têm sido essenciais para a manutenção da liderança económica e política de Washington.
Os últimos anos mostram que estão em curso mudanças importantes em relação ao nível da investigação básica, tecnologia e inovação. Os EUA e os países da União Europeia continuam a desempenhar um papel extremamente relevante nestas áreas. O problema nos EUA é que há cada vez menos americanos interessados em estudar a sério coisas como engenharia, matemática e física. Cerca de metade dos alunos a frequentar programas de mestrado e de doutoramento nas áreas de engenharia em universidades americanas são estrangeiros. Quarenta por cento dos doutorados a trabalhar nos EUA nas áreas da ciência e engenharia também são estrangeiros. No passado, a competição por este talento científico era praticamente nula. Hoje em dia não é. Veja-se o caso de Singapura, que nos últimos anos tem conseguido atrair um número extremamente elevado de cientistas altamente qualificados. Veja-se também o caso da China.
Na Europa há a tendência para pensar que a China não é, nem será tão cedo, um actor importante no campo da ciência e tecnologia. A realidade é bem diferente. Pequim tem vindo a apostar claramente na competitividade tecnológica e melhorou substancialmente a sua infra-estrutura e capacidade produtiva. O resultado? A paisagem científica e tecnológica mundial está a mudar. Um dos motores desta mudança é a crescente capacidade da China para levar a cabo investigação e desenvolvimento e para exportar cada vez mais produtos de alta tecnologia.
Miguel Monjardino
Expresso