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MensagemAssunto: Memórias...   Memórias... EmptyQui Nov 29, 2007 2:53 pm

Fui para a guerra ter com o meu marido


Idelta Tomé quis escapar à emigração e foi juntar-se ao marido no mato de Angola. Viveu cinco meses num quartel em zona cem por cento operacional. Às escondidas do general.

Nome: Idelta Tomé.
Idade: 49 anos.
Naturalidade: Ponta Delgada.
Profissão: professora do ensino tecnológico.

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Idelta Tomé de volta aos cenários bélicos que a devolvem à adolescência – e que hoje, porém, detesta (foto: Rodrigo Bento)


Idelta Tomé era uma adolescente de 17 anos, com 1,54 m de altura e o hábito de bordar, quando pegou pela primeira vez numa G-3. Estávamos em 1974 e as armas eram ainda um exclusivo dos homens. “Da primeira vez que disparei, o impacto da espingarda até me fez levantar os pés do chão”, recorda. “Os instrutores tentavam ensinar-me, mas eu nunca acertava no alvo. E tudo aquilo era emocionalmente muito pesado para mim…” À sua volta espraiava-se a região do Mucondo, terra de guerra e de animais selvagens, e nada naquele sol abrasador, adocicado por aquilo que julgava ser “cheiro a macaco”, parecia condizer com as expectativas que levava dos Açores, as ilhas chuvosas e sombrias de onde a pouca idade e os fracos recursos nunca antes lhe haviam permitido sair. E, porém, ao regressar ao quartel, Idelta sentia-se em casa. Não tivera qualquer tipo de formação militar, era a única mulher branca entre 120 homens em sucessivas operações de combate – mas sentia-se em casa no quartel.
Portugal vivia os últimos meses de conflito, consumada já a Revolução que haveria de acabar com a ideia de “colónia”, quando Idelta Tomé decidiu partir para Angola. Numa altura em que se emigrava para fugir à guerra, fez precisamente o contrário: ansiosa por escapar à emigração, foi juntar-se ao marido em zona cem por cento operacional de guerra. E, durante cinco meses, viveu com ele no aquartelamento, assustada com os tiros ao fundo e fechando-se na camarata de cada vez que as tropas planeavam nova operação. Destacado para o Ultramar como alferes miliciano, Carlos Tomé simplesmente não aguentara as saudades. Resultado: escrevera-lhe uma carta a descrever-lhe um quartel com condições palacianas, repleto de mordomias e de boa-vida, e convencera-a a juntar-se-lhe em África.
Os dois casaram a 2 de Junho de 1974, durante uma licença do alferes em Ponta Delgada, e seguiram poucos dias depois para o Norte de Angola. À chegada do avião, os soldados formaram em guarda de honra ao longo da pista, disparando salvas de saudação. O oficial de dia recebeu-a com um robe chinês, vermelho – e na mão trazia o rancho do dia, para submetê-lo à sua aprovação. E então Idelta, ainda atordoada pelos primeiros tiros ouvidos na vida, começa a viver como que um sonho – um quotidiano estranho de soldados a partirem e a chegarem e a divertirem-se pela noite dentro, nos momentos de descontracção. Nas camaratas, os colegas do marido haviam cosido um ao outro dois colchões individuais, improvisando uma cama de casal. E o quartel ganhava a sua coqueluche – a sua menina, a representação numa só mulher de todas as mulheres deixadas atrás, na Metrópole, esposas e namoradas e mães e irmãs.

“Ao princípio, assustei-me muito. Nunca sequer tinha visto uma pessoa de pele negra… Mais: ia à espera de um palácio com ponte levadiça e fosso à volta, completamente intransponível, e o que encontrava era meia dúzia de casotas, cercadas de um arame farpado que até eu conseguia ultrapassar. Ainda por cima, o oficial recebia-me de robe chinês. E eu só pensei: ‘Mas esta gente é toda maluca... Como é que eu vou viver aqui?’ Ainda por cima, cheira a macaco...”

“Mas fui-me habituando. Primeiro, o capitão começou a dar-me tarefas, como ajudar na contabilidade ou interagir com as mulheres indígenas que viviam em torno do quartel, aprisionadas pelas tropas. Depois, os soldados eram todos muito cavalheiros comigo. Saíam do quartel e traziam-me chocolates, revistas e jornais antigos para eu ler… Ao fim do dia, jogávamos ‘crapaud’ todos juntos”, acrescenta. Foi a sua lua-de-mel", conta Idelta.
Autorizada pelo capitão a permanecer no perímetro, Idelta tinha no entanto de esconder-se do general que, periodicamente, vinha de Luanda visitar o quartel. Nessa altura, era levada para as fazendas mais próximas, a 52 quilómetros, onde as mulheres dos fazendeiros brancos lhe davam a comer pratos africanos e os empregados negros a abanavam com folhas de palmeira. Noutros dias, porém, vagueava pelo aquartelamento, com o coração nas mãos, à espera de que o marido voltasse de nova operação. Ocasionalmente, participava em carreiras de tiro improvisadas, disparando G-3 ou Mauser em direcção a latas de Coca-Cola. Mortos ou feridos, apenas os viu quando um pelotão vizinho sofreu um acidente de Berlier pouco depois de passar junto ao quartel, feliz, acenando com as boinas no meio da poeira. Ainda chegou a sair numa caçada nocturna, mas seria proibida de voltar a fazê-lo. E, diz, com os olhos pequeninos dissolvendo-se num sorriso:

“Encontrámos um veado e, quando iam a disparar, comecei a chorar e aos gritos, pedindo que não o matassem. Nunca mais me levaram. Mas o veado salvou-se.”

A experiência prosseguiu em Luanda, durante mais três meses. Na cidade grande, porém, a atmosfera estava longe de ser a mesma. Destacado para operações de protecção à população branca, Carlos Tomé passavam então metade do tempo fora de casa, deixando-a sozinha no apartamento. Os perigos espreitavam por toda a Luanda: atiradores furtivos escondiam-se nos cantos mais imprevisíveis, a filha da porteira do prédio apanhou uma bala perdida – e Idelta sentiu sobretudo medo e solidão, negligenciada pelas mulheres dos oficiais de carreira, que a consideravam então demasiado jovem e ingénua para as suas festas.

“Hoje, tenho uma filha de 30 anos e outra de 21. Nenhuma tem 17, como eu tinha na altura. Mesmo assim, se uma delas me dissesse que ia para a guerra com o marido, eu haveria de reagir exactamente como a minha mãe reagiu: ficando em pânico, pedindo-me de todas as formas que não fizesse uma loucura dessas só por amor”

Mas eu não queria emigrar. Naquela altura toda a gente nos Açores queria ir para a América ou para o Canadá, e de facto quatro dos meus cinco irmãos foram, escapando inclusive à guerra. E, embora a minha mãe me dissesse que um casamento que começa assim jamais poderia dar certo, eu recusei-me a ouvi-la”, diz. Deu certo, em todo o caso: 32 anos depois, Idelta e Carlos Tomé continuam casados, e o mais provável é que a devoção desse primeiro ano tenha blindado para sempre o percurso romântico do casal.

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Idelta e Carlos Tomé no dia do seu casamento, em 1974, poucos dias antes de partirem juntos para o mato de Angola (foto: D. R.)


SENSIBILIDADE E BOM SENSO

Idelta Tomé dedica-se hoje, aos 49 anos, à educação cívica e de apoio à comunidade, no âmbito do ensino tecnológico, em que se profissionalizou. A sua paixão, porém, é o trabalho com esquizofrénicos e toxicodependentes. Contratada uma equipa de terapia ocupacional na Casa de Saúde de Ponta Delgada, dá aulas de cerâmica e tenta conjugar as dificuldades das famílias modernas na gestão das relações com os entes diminuídos com as ambições destes em vencer as barreiras do espaço a que estão confinados. Única formação: a sensibilidade. “Vou aprendendo a lidar com aquelas pessoas. Com os esquizofrénicos, é muito difícil. Mas vou tentando”, explica. Um dos doentes, por exemplo, julgava ver o diabo – e então Idelta aconselhou-o a dedicar-se ao trabalho no jardim, visto que o diabo “não gosta nada do trabalho”. “Sei que não é científico, mas ele dormiu muito bem nessa noite. E, um dia que me reforme, pretendo continuar a fazer isto em regime de voluntariado”, explica. Hoje em dia, não pode ver uma arma.

"Correio da Manhã" - Lisboa, 05 de Março de 2006
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MensagemAssunto: Re: Memórias...   Memórias... EmptySáb Dez 01, 2007 8:24 am

O Preço do Pão


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Foto de Manuel Bastos


Olhei para o relógio, eram 10 horas da manhã do dia 31 de Dezembro de 1973 e ali íamos nós a caminho das Bananeiras, uma dúzia de viaturas e cerca de sessenta homens, privilegiados, que tínhamos tido o bónus de ir passar a passagem do ano às Bananeiras, o pretexto era arranjar a ponte para que a coluna, que no princípio do ano viria de Porto Amélia, conseguisse chegar a Mueda .
Isso era o pretexto, pois a finalidade principal era afastar de Mueda a maioria dos homens da 3503, companhia que em Janeiro faria 24 meses de comissão, e em que a insatisfação e até mesmo a revolta já grassava tanto entre os graduados como entre os soldados.
Assim, a caminho das Bananeiras, zona a 15Kms de Mueda, famosa pelas emboscadas aí já acontecidas e pelas minas normalmente aí colocadas, seguiam cerca de 40 homens da 3503 mais 20 e tal homens da engenharia com algumas máquinas. Os atiradores tinham por missão montar a segurança e fazer a protecção aos homens da engenharia enquanto durassem os trabalhos do arranjo da picada e da reconstrução da ponte. Comandavam esses homens, o capitão Almeida e o alferes Silvestre, ambos da 3503, que por diversas vezes tinham levantado a voz em defesa dos homens da companhia e portanto não era conveniente estarem em Mueda no dia 1, onde estava previsto haver um almoço de Ano Novo com algumas individualidades vindas de Nampula, de Lourenço Marques e talvez até algum ministro da Metrópole, os quais faziam o sacrifício de nesse dia se deslocarem às zonas de guerra para, diziam eles, levantar o moral das tropas, algumas das quais já há quase 24 meses ali se encontravam.
Para evitar que Suas Excelências apanhassem algum susto enquanto estivessem em Mueda, a maioria das tropas operacionais eram colocadas no mato, quer em patrulhamentos afastados quer alguns próximos do arame farpado, de modo que os combatentes da Frelimo se mantivessem o mais longe possível e sem possibilidades de efectuar qualquer ataque.
Assim, além destes homens, outros elementos da 3503 e de outras companhias, foram colocados no mato em defesa afastada de Mueda e também esses estavam portanto impedidos de incomodar as altas individualidades.
Voltei a olhar para o relógio, era meio-dia e avistávamos finalmente a ponte das Bananeiras onde já se encontravam os homens de Nancatári que nos vinham reforçar enquanto durasse a nossa permanência ali.
A companhia de Nancatári, a 3501, companhia do nosso batalhão, formada juntamente com a nossa dois anos antes em Penafiel, era portanto constituída por amigos comuns, alguns das mesmas terras da Metrópole e que embora a apenas 28Kms de distância, as circunstâncias não permitiam que se vissem há muitos meses. Os abraços foram muitos e durante alguns minutos contaram-se histórias e recordaram-se amigos já desaparecidos.
De Nancatári tinham vindo dois pelotões, um que ficaria connosco e outro que regressaria a Nancatári imediatamente, pois o aquartelamento distava apenas 12Kms e como todo o trajecto tinha sido picado nessa manhã, decerto não tinha havido tempo para os homens da Frelimo colocarem novas minas. Mas nessa noite era a noite de passagem de ano, pelo que ficou combinado que logo de manhã um grupo comandado pelo Capitão Almeida que não conhecia Nancatári, iria a esse aquartelamento buscar pão mole, algumas bebidas e talvez mais qualquer iguaria que nos ajudasse a passar melhor o dia de Ano Novo no mato.
Depois deles partirem ali ficámos nós, a pensar que na Metrópole a maioria das pessoas da nossa idade estavam preocupadas com o local onde iriam passar o reveillon ou com o que levariam vestido e nós ali, preocupados em organizar a defesa para o caso de nessa noite sermos atacados.
Quando o sol se pôs e se fez noite, já instalados debaixo das viaturas ou em valas, cada um de nós bem abastecidos de bebidas que tínhamos trazido para a ocasião, resolvemos festejar, e uns sozinhos e em silêncio, outros em pequenos grupos, fomos bebendo e pensando na Metrópole, bebendo e pensando na Metrópole, pensando na Metrópole e bebendo, até que à meia noite nos esquecemos onde estávamos e alguns mais efusivos resolveram mandar algumas granadas e alguns tiros para o ar, fazendo dessa forma com que alguns animais da selva soubessem pela primeira vez nas suas vidas que aquela era a noite de passagem de ano .
A pouco e pouco os corpos foram cedendo ao cansaço e o sono tomou conta da maioria dos homens, apenas os que estavam de sentinela tinham que esperar de olhos bem abertos a sua vez de serem substituídos por outros nessa tarefa.
Seis e meia da manhã, uma vintena de homens preparavam-se para ir a Nancatári , quando um rebentamento muito próximo nos fez tomar consciência que, dia de Ano Novo ou não, estávamos na guerra e estávamos a ser atacados. Ao segundo rebentamento apercebemo-nos que tudo se passava a dois ou três Kms de distância, o que confirmámos imediatamente a seguir quando começámos a ouvir as kalashs da Frelimo e a resposta de algumas G3. Alguém gritou : devem ser os homens de Nancatári que nos vêm trazer o prometido pão quente.
Imediatamente os homens que já estavam preparados para ir a Nancatáti saltaram para cima das viaturas e sob o comando do Capitão Almeida arrancaram picada fora nessa direcção. Passados dois ou três Kms depararam-se com uma situação dramática de meia dúzia de homens a tentarem sobreviver e a defenderem-se estoicamente a si próprios e a cerca de uma dezena de companheiros que bastante feridos não estavam em condições de o fazer. A Frelimo durante a noite tinha montado um fornilho ( várias minas ligadas entre si ) e preparado uma emboscada para atacar os elementos que sobrevivessem às minas.
Eram uma dúzia e meia de homens que lutavam pela vida, heróis anónimos, que tinham arriscado, voluntariamente as suas vidas para levarem aos seus camaradas no mato o tão prometido pão mole e mais alguns mantimentos.
A chegada de reforços impediu que a Frelimo levasse até ao fim os seus intentos, mas já não impediu vários homens de perderem a vida e outros de ficarem feridos com mais ou menos gravidade.
O pão, esse não me lembro se chegámos a comê-lo, mas foi sem dúvida o pão mais caro de que alguma vez tive conhecimento. Não pagámos em escudos nem em qualquer outra moeda, pagámos em sangue e em vidas, pois o preço final saldou-se por 4 mortos e 8 feridos .
Entretanto em Mueda as tais altas individualidades tiveram direito ao seu almoço com as tropas, tendo ao fim do dia partido novamente de avião para as suas comissões em terras do Sul, sem qualquer perigo de minas ou de emboscadas.


Partiam contudo com as consciências tranquilas, pois já podiam dizer que tinham passado um dia em zona de guerra e tinham voltado sãos e salvos. Quem sabe, até talvez tivessem direito a mais uma condecoração.
Entretanto no mato, onde ainda ficámos vários dias, não voltámos a ser reabastecidos, pelo que nos restantes dias comemos sempre pão duro.



© António Silvestre
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MensagemAssunto: Re: Memórias...   Memórias... EmptySáb Dez 08, 2007 11:57 am

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