Sócrates, versão macho ibérico
8:00 | Segunda-feira, 10 de Dez de 2007
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"Socialista e atleta, reflexivo mas veemente. Seguimos o 'sprint' do primeiro-ministro português, pioneiro a alcançar a maioria absoluta da esquerda no seu país e 'padrinho' do novo Tratado da União como presidente de turno da UE." Assim começava a reportagem de dez páginas que a revista do jornal espanhol "El País" dedicava, no domingo passado, ao primeiro-ministro português. "Sócrates a toda a velocidade", era o título - e uma elegante fotografia a preto e branco de João Pina, mostrando um Sócrates desportista, de punho cerrado, correndo com o Tejo em fundo, completava a dupla página inicial. A legenda explicava que José Sócrates adora fazer "jogging" "à primeira hora da manhã, levante-se em Luanda, Moscovo ou Washington". Na "Única" desta semana, este trabalho não está paginado e prefaciado com o mesmo ímpeto olímpico. Há imagens e frases que só nos ficam bem-vindas de fora. Lá fora talvez ninguém ache embaraçoso que Sócrates tenha deixado encerrar a Praça Vermelha para o seu "jogging". Mas aqui na Lusitânia somos assim: educados para nos incomodarmos pela calada uns aos outros - mas sem darmos nas vistas. Esta educação para a tibieza tem o seu lado bom (embora só um): o de desprezarmos a ostentação de Poder.
Na entrevista, Sócrates esforça-se por distinguir arrogância de firmeza. É verdade que é uma distinção importante, que os portugueses não gostam de entender. Mas também é importante distinguir maioria absoluta de mando absoluto - e parece-me que essa distinção escapa ao nosso primeiro-ministro, quando diz: "Se o povo deu ao PS uma maioria absoluta pela primeira vez, não é para que tudo continue igual, é para cumprir o que creio que é melhor para os portugueses." (A tradução é minha, sobre o texto do "El País" não sei se coincidirá com a do "Expresso"). Convém não esquecer, para começar, que maioria não é unanimidade - um primeiro-ministro é-o também dos que não votaram nele -; além de que, em democracia, um voto é uma prova de confiança, mas não a entrega da cabeça dos votantes ao cérebro iluminado de um governante. No mesmo dia em que esta reportagem era publicada no "El País", a militante socialista Ana Benavente afirmava, num artigo de opinião no "Público", não se rever "neste partido calado e reverente". E deixava um conjunto de perguntas fundamentais - das quais selecciono algumas, para as quais me parece urgente uma resposta: "Para resolver o défice das contas públicas teria sido necessário adoptar as políticas económicas e sociais e a atitude governativa fechada e arrogante que temos vivido? Teria sido necessário pôr os professores de joelhos num pelourinho? Teria sido necessário aumentar as diferenças entre ricos e pobres? Criar mais desemprego? Penalizar as pequenas reformas com impostos? Criar tanto desacerto na justiça?"
Visto de Espanha, Sócrates é "muy guapo", "valiente" e "macho" - pelo menos foram estes os comentários que recebi por "e-mail" de amigos espanhóis, felizes por verem o pequeno país vizinho tão bem parecido e europeu. Mesmo descontando a generosidade implícita no trato com os amigos, há nestes comentários uma alegria nascida desse alimento essencial à alma que é o optimismo: Sócrates parece-lhes valente e macho por oposição a um Zapatero que se lhes afigura demasiado macio, em particular em relação ao terrorismo. Claro que Sócrates não tem que enfrentar terroristas, e essa é a cruel diferença de Espanha.
Poderíamos contrapor que Sócrates nem sequer teve ainda coragem de tornar o casamento um direito das pessoas, independentemente do sexo ou que, em vez de tornar o acesso à Justiça universal e gratuito (como é em Espanha), promoveu uma remodelação legal que protege os criminosos e pune as vítimas (através do desculpabilizante conceito de "crime continuado"). A frustração das esperanças socialistas em Espanha consola-se na ideia de um socialismo mais autêntico (e, portanto, possível) aqui ao lado - e vice-versa, claro. A reportagem de Miguel Mora é, além de muito bem escrita, informada e isenta - nas notas complementares no artigo do "El País", o jornalista não escamoteia a novela das habilitações literárias do primeiro-ministro, os críticos que definem as suas reformas como "mera cosmética neo-liberal", nem a sua má relação com a imprensa, por exemplo. Escrever sobre Portugal é sempre uma tarefa espinhosa para um correspondente de Espanha - porque os portugueses podem embirrar com um governante mas não gostam de o ver mal-tratado no estrangeiro. Há sempre um momento em que se resmunga: "É mau, mas é nosso" - porque quem nos representa leva sempre um pedaço de nós (desde que não abuse). Mas também é verdade que este Sócrates para consumo exterior é muito mais distendido e afável do que aquele que calha aos jornalistas portugueses. Contente no seu papel transitório de presidente da União Europeia - esquecido talvez que o tal Tratado supostamente "porreiro" para Lisboa acaba com estas presidências, pondo-nos nas mãos dos grandes da Europa. "Socialista"? Duvido. "Atleta, reflexivo e veemente"? Talvez. Mas eu desconfio muito de quem só admira poetas mortos.
Inês Pedrosa