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 Oscar Wilde e o Pós-colonialismo

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Xô Esquerda

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MensagemAssunto: Oscar Wilde e o Pós-colonialismo   Oscar Wilde e o Pós-colonialismo EmptyDom Fev 24, 2008 5:45 am

Oscar Wilde e o Pós-colonialismo

22-Fev-2008

Texto de Mariana Avelãs


The one duty we owe to history Is to rewrite it.(1)

O pós-colonialismo é, desde os anos noventa, a coqueluche da teoria literária. De mansinho, a aversão doentia a tudo o que fosse «político», «ideológico» ou «engagé», típica do apogeu do pós-modernismo, foi sendo substituída por um fascínio por termos como «identidade», «hibridismo», «margens» ou «representação de minorias», que ecoam actualmente pelos corredores da academia (não necessariamente da portuguesa, mas até isso está a mudar), e não só nos departamentos de línguas e literaturas, mas também em outras áreas das ciências sociais: história, filosofia, ciência política, antropologia... e até em terrenos mais obscuros como os do marketing, da informática ou do turismo.

Para um leitor comum, a complexidade das teorias pós-colonialistas, e sobretudo o tom muitas vezes excessivamente vago e críptico dos textos, levantam sérios problemas de compreensibilidade. E embora o pós-colonialismo resista militantemente a qualquer tentativa de definição e seja um fenómeno em constante (e saudável) mutação, pode-se dizer que a sua génese resulta sobretudo do acesso a estudos superiores na segunda metade do século XX de largas camadas da classe média em países sob jugo colonial, sobretudo no vasto império britânico. Educados na língua e no sistema do colonizador, e capazes de se impor nas suas estruturas administrativas, académicas e culturais, autores como Edward Said encontram-se numa posição privilegiada para reflectir sobre e denunciar o que entretanto se tornou num lugar-comum: que a história é escrita pelos vencedores, e que a desumanização e a estereotipação dos nativos são necessárias para que o colonizador legitime a ocupação e afirme, através do processo básico da oposição, a sua própria auto-estima. Por outro lado, os escombros da opressão colonial criam as bases para uma história não oficial, sob a forma de tradição, cuja dinâmica nada tem a ver com o conceito de «derrotado». As culturas de resistência são, aliás, muitas vezes mais produtivas e imaginativas que a hegemonia do statu quo, e uma das características dos povos colonizados é precisamente a capacidade (necessidade?) de se imaginarem em permanência, e de o fazerem sem perder de vista que a resistência à ocupação não pode ser feita sem o domínio das armas culturais do inimigo. Um dos casos mais emblemáticos é Satanic Verses, de Salman Rushdie (de origem indiana), que retrata uma metrópole inglesa cinzenta, estéril e culturalmente pobre, à mercê de gerações de imigrantes de várias cores que, entre bairros sociais, lealdades em reconstrução e a necessidade quase doentia de manterem laços culturais com uma realidade nativa que não conhecem ou já esqueceram, lançam um grito que tanto pode ser entendido como ameaça ou promessa: «I am going to tropicalize you.».

Muito se tem discutido se o pós-colonialismo é uma corrente crítica ou criativa. No mínimo, a questão faz pouco sentido, porque o quer que seja o pós-colonialismo aplica-se certamente tanto à teoria literária como aos textos que ela se propõe estudar. A verdade é que, como qualquer quadro teórico, a grande virtude do pós-colonialismo é oferecer uma estrutura que permite novas leituras dos textos, concebidos muitos deles antes de o pós-colonialismo fazer sequer sentido de um ponto de vista histórico. E novas leituras inseridas numa perspectiva de intervenção cultural e política terão certamente impacto na geração de novos textos... que levantarão, por sua vez, desafios sempre novos à crítica. A dialéctica no seu melhor, portanto.

Quer seja na luta no terreno, na produção cultural ou na reflexão crítica, numa fase inicial o pós-colonialismo é um movimento de resistência. O objectivo principal é instaurar os «colonizados» como agentes da história. E porque a violência e a destruição fazem inevitavelmente parte do processo de colonização, não apenas no domínio dos meios de coerção, mas também nos mecanismos de geração de significado, uma das primeiras missões pós-coloniais é a celebração de um passado livre de contaminação colonial. No entanto este processo traduz-se geralmente numa pura invenção (e não no retomar) de tradições, porque é supérfluo tentar apagar a memória do colonialismo, mais não seja porque a própria aspiração a uma identidade pós-colonial pode ser considerada um legado colonial. Por outro lado, o corte abrupto com o passado provocado pela colonização investe a memória colectiva de importância política, sobretudo quando as colónias conquistam a independência e urge construir, mais do que passado simbólico, um presente próprio. Não são raros os casos em que as identidades pós-coloniais excluem o direito à diferença e à auto-crítica e acabam por gerar culturas tão artificiais, intolerantes e monolíticas como as impostas pelo colonizador. Um dos grandes desafios dos movimentos de libertação pós-colonial é precisamente a necessidade de, em algum momento, substituir a simbologia, mais ou menos opressiva, da nação liberada pela nação de facto, com as suas realidades contingentes. O que passa inevitavelmente por incorporar na memória colectiva o legado colonial e as muitas nações que qualquer nação alberga.

Não faltam críticas ao projecto do pós-colonialismo: que paradoxalmente representa sobretudo uma visão ocidental, e algo paternalista, do mundo; que é um movimento elitista (pouco extravasa o meio universitário, é um facto); que equipara realidades coloniais muito díspares; que esquece que grande parte do mundo outrora colonizado é-o ainda, mas de outras formas — se é que é possível distinguir claramente as esferas da colonização política das da colonização económica; que por vezes dá a entender que o que marca as diferenças entre o Norte e o Sul são questões de valor, significado, história, identidade e práticas culturais, em vez de armas, acordos de comércio, alianças militares, exploração de recursos e afins; que corre o risco de se instituir como fetiche inócuo e pura e simplesmente puxar as periferias para o centro e vice-versa. Terry Eagleton, um dos expoentes da crítica literária assumidamente marxista, lembra (2) que convém não deixar que a histeria com a identidade cultural e o direito à diferença faça esquecer que nem todas as exclusões sociais são patológicas (devemos celebrar a identidade de nazis, racistas, homófobos e quejandos?), e que nem todos os estrangeiros são bem-vindos — as forças de ocupação imperialistas, por exemplo. Sobretudo, preocupa-o que o reconhecimento da diferença, hibridismo e multiplicidade suplante valores mais genéricos como a solidariedade ou a igualdade.

O pós-colonialismo, no entanto, tem uma grande virtude: é suficientemente amplo e mutante para encaixar as críticas e transformá-las em virtudes. Uma das principais publicações científicas sobre o assunto tem o nome sugestivo de Interventions, porque o objectivo é teorizar para intervir também para lá da realidade crítica e textual, e cada vez mais são publicados textos que abordam temas como a globalização, a exploração económica, as migrações e o mercado de trabalho. Continua-se sem perceber, porém, como é que as periferias do mundo académico (que não lêem nem os manifestos sobre as suas interessantes identidades híbridas e dialécticas, nem os textos que vociferam contra a sua exclusão) vão poder passar de objectos de divagação libertária a agentes da sua própria libertação. Mas é inegável que o pós-colonialismo instiga literatura e política a saírem do armário e andarem de mãos dadas sem que ninguém as acuse de promiscuidade ou degeneração. Se não há quem dê por isso fora do meio decadente das universidades, isso é um problema da literatura, da política, e sobretudo das universidades. O pós-colonialismo não tem culpa nenhuma.


«I am Irish by race, but the English have condemned me to speak the language of Shakespeare. The Saxon took our lands from us and made them destitute... but we took their language and added new beauty to it.»(3)

A Irlanda foi a primeira nação pós-colonial do século XX. A ocupação inglesa iniciou-se no século XII, mas só se estendeu à totalidade do território no início do século XVII, com o colapso da sociedade gaélica e a posterior chegada de grandes contingentes de colonos de origem escocesa (e portanto protestantes, enquanto a maioria da população nativa continuava a ser católica). Após sucessivas rebeliões, a Irlanda passou a fazer formalmente parte do Reino Unido em 1800, e foi preciso um século inteiro de resistência, uma sublevação suicida em 1916 e uma guerra civil (1922-23), para que ingleses e irlandês assinassem (ou aceitassem) o acordo que instituiu o «Estado Livre Irlandês». Em 1949 a Republica da Irlanda auto-proclamou-se, mas entretanto o território fora dividido, e seis dos condados mais a norte continuam, ainda hoje, a fazer parte do Reino Unido — e as consequências são conhecidas.

Sendo a Irlanda um país do primeiro mundo, a sua memória colectiva partilha traços com as dos países do terceiro, porque foi durante 8 séculos uma colónia dentro da Europa. A conquista não se limitou a efeitos territoriais, militares e políticos, e passou também pelos modelos coloniais clássicos de confiscação de terras e ataque continuado às leis, língua, religião e culturas nativas. O momento mais traumático foi a Grande Fome de meados do século XIX — uma praga na colheita de batatas, o alimento fulcral da maioria da população, levou à morte de um milhão de pessoas e arrastou outro milhão para a emigração (principalmente rumo aos EUA, em barcos cujas condições lhes valeram o nome de «navios-caixão»), enquanto saíam dos portos irlandeses rumo à metrópole outros barcos, carregados de alimentos, aplicando o princípio do laissez-faire, laissez‑passer mercantil. A Irlanda pós-famina ficou reduzida a um terço da sua população e em consequência a língua irlandesa foi praticamente erradicada do território.

No século XIX, a resistência irlandesa, embora não abandonando a tradição, já longa, da rebelião armada, enveredou por um caminho paralelo: o do nacionalismo cultural. O nome mais sonante do período é sem dúvida o de W.B. Yeats, e o projecto que ajudou a construir tinha todas as marcas de um pós-colonialismo prematuro: reclamar e mitificar os tempos de glória da Irlanda dos celtas e transformar o estereótipo literário do irlandês estúpido, bêbedo e bobo da corte (em vigor desde os tempos de Shakespeare) num ideal de homem irlandês rural, robusto, honrado e dotado de uma infinita sapiência tradicional, expressa nas formas poéticas sublimes e milenares do folclore – em língua irlandesa (que Yeats não falava ou compreendia de todo). A virtude política do revivalismo celta não deve porém ser posta em causa por causa do seu carácter artificial, porque no fundo corresponde a mais uma ficção útil (e muito) para a resistência ao domínio colonial. Mas os distúrbios em Dublin aquando da primeira encenação da peça The Playboy of the Western World de J.M. Synge são um exemplo típico do que acontece quando tais ficções descambam no que os esforços pós-coloniais têm de pior: enraivecida com a representação negativa de um irlandês (Chris Mahon é, para além de gabarola, um suposto parricida), tão contrária ao novo estereótipo positivo, a audiência sentiu-se traída no orgulho nacional e reagiu violentamente.

Ao longo do século XX, o século da afirmação pós-colonial da Irlanda, mas também da partição da ilha, assistiu-se a uma cristalização bastante estéril das identidades «verde» (católica) e «laranja» (protestante), tanto a Norte como a Sul. A Irlanda independente tornou-se um Estado assumidamente católico e conservador, enquanto a Norte o conflito instituía duas comunidades acossadas, que se afirmavam pela negativa ou por alianças quer com Dublin quer com Londres que em tudo se assemelhavam às que Rushdie descreve em Satanic Verses. Sobretudo a Sul, coube aos escritores abrir algumas frechas neste ambiente claustrofóbico, mas é sintomático que muitos (James Joyce e Samuel Beckett, por exemplo) tenham acabado por cumprir o desígnio estatisticamente mais relevante dos irlandeses: emigrar.

E no entanto, mesmo com as questões da identidade (o que é ser-se um escritor irlandês? É ser-se um não-inglês numa Irlanda retrógrada? É possível que os ventos da modernização venham de outro sítio que não o continente, flanqueado pela Inglaterra?) e da linguagem (o que é ser-se irlandês e falar inglês? Qual o papel da língua irlandesa quando corresponde mais a um símbolo que a um sistema comunicacional vivo?) no epicentro da riquíssima literatura produzida na Irlanda no século XX, a aplicação do pós-colonialismo à Irlanda foi tardia.


(continua)


Última edição por Xô Esquerda em Dom Fev 24, 2008 5:46 am, editado 1 vez(es)
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MensagemAssunto: Re: Oscar Wilde e o Pós-colonialismo   Oscar Wilde e o Pós-colonialismo EmptyDom Fev 24, 2008 5:46 am

(Continuação)


Em 1996 Declan Kiberd edita Inventing Ireland – The Literature of a Modern Nation, que, apesar da ritual negação na introdução de quaisquer propósitos ligados a essa coisa esquisita, totalitária e pretensiosa que é o pós-colonialismo, assinala a inauguração oficial da corrente na crítica literária Irlandesa. Desde então, nomes como Seamus Deane, Luke Gibbons ou David Lloyd têm-se multiplicado em análises e propostas deveras interessantes, e assumem sem pejo que são crentes praticantes do credo pós-colonialista. A Field Day Review, editada anualmente desde 2005, é possivelmente a publicação crítica mais interessante dos últimos anos, por motivos que explorarei mais adiante.

Numa primeira fase, a produção teórica desta gente passou por demonstrar como a introdução do factor irlandês em autores tão insuspeitos como Edmund Burke, Bram Stoker ou Jonathan Swift (todos protestantes anglo-irlandeses) gera novas leituras estimulantes: o conservadorismo de Burke seria sobretudo uma preocupação com o facto de os mais oprimidos (nomeadamente os católicos irlandeses) serem as principais vítimas de sérias disrupções no funcionamento do Estado, hipótese corroborada pela posição anti-colonial de Burke em relação aos E.U.A.; e Dracula seria sobretudo um tratado gótico acerca de uma classe (a ascendência agrária anglo-irlandesa) que, em nome da terra (sem a qual o Drácula não viajava dentro do caixão), sugava cruelmente o sangue... dos católicos irlandeses.

Cedo, porém, o pós-colonialismo irlandês debruçou-se sobre o verdadeiro cerne da questão colonial irlandesa: a relação com a Inglaterra no contexto da pós-independência. Mais do que reafirmar as diferenças que pelo menos 100 anos de nacionalismo cultural haviam consagrado no limite simplista do eu-sou-eu-porque‑
-não-sou-tu, a maioria dos textos mais recentes realçam a dialéctica realista de qualquer relação colonial — não existiria a Irlanda como a conhecemos hoje se não houvesse uma Inglaterra na sua história. E vice-versa. Assim, por exemplo, o facto de, como qualquer colónia, a Irlanda ter sido utilizada como laboratório para experimentação política, económica e social, sobretudo ao longo do século XIX, em aspectos tão fundamentais como a relação entre o Estado e a religião, a posse e o usufruto das terras, a educação ou o sistema policial, passaram a ser considerados sintomas de uma relação de dependência mútua. A própria noção do estereótipo foi recolocada, realçando-se o facto de ele sido de tal forma absorvido por ingleses e irlandeses que acabou por constituir uma verdadeira âncora identitária e ponte de comunicação, fundamental para a integração dos muitos imigrantes irlandeses em Inglaterra. É óbvio que outras pontes bem mais positivas têm de ser constantemente construídas, mas não terá o ideal romântico do século XIX, em que se baseia ainda hoje muita da simbologia nacionalista, um verdadeiro legado colonial? Ao adaptar o binómio victoriano do inglês mercantilmente viril vs celta esteticamente efeminado, criando símbolos nacionais como o espadaúdo guerreiro celta, Cúchulainn, e concedendo aos desportos tradicionais irlandeses (hurling e futebol gaélico) um enorme estatuto político, traduz-se, em vez de eliminar, o preconceito.

Mais uma vez, não faltam vozes a denunciar as muitas falhas no pensamento crítico pós-colonialista irlandês. Internamente, as críticas centram-se em dois aspectos: a tendência para homogeneizar o Norte e o Sul da Irlanda, apesar das diferenças ancestrais e de praticamente um século de existência política distinta; e a quase ausência de autores e temas da comunidade protestante/unionista do Norte no seio da produção crítica. Mais a Sul, os poucos e recentes críticos que escrevem em língua irlandesa queixam-se da paradoxal anglofonia do fenómeno. A resposta a estes anseios tem sido, apesar da legitimidade das críticas, positiva. E tem vindo sobretudo da fúria editorial da Field Day que, através de panfletos, edições críticas, antologias, e, sobretudo, da Field Day Review, tem lançado lufadas de ar provocador e lúcido sobre os estudos irlandeses. A Field Day começou por ser uma companhia teatral, fundada em Derry em 1980 por Brian Friel e Stephen Rea, com o objectivo de criar uma identidade cultural capaz de suplantar as divisões tradicionais da Irlanda do Norte. Teve como expoente nos anos 80 a peça Translations de Brian Friel, mas acabou por se afirmar sobretudo como projecto editorial de índole assumidamente pós-colonialista. No entanto as preocupações são, no fundo, hoje as mesmas de então: assumir que a literatura, crítica ou criativa, tem um papel fundamental na construção de uma Irlanda em paz, unida, mas capaz de integrar não só o passado colonial como as camadas da população que não se identificam com o ethos católico e nacionalista. Mais ainda quando a Irlanda, ao fim de séculos a exportar emigrantes, é agora terra de acolhimento de gente de várias partes do mundo, fazendo explodir em muitas cores o mosaico verde e laranja tradicional (e também mitos urbanos como a inexistência de racismo). Têm passado pelas páginas da Field Day Review, por exemplo, artigos de e sobre artistas da comunidade lealista, sobre a necessidade de trocar o bilinguismo pelo multilinguismo, ou chamando a atenção para o facto de muitos dos textos do apogeu do período gaélico (ie, até finais do século XVI) expressarem já em termos literários a capacidade de adaptação da sociedade irlandesa ao longo dos tempos, realçando que a identidade é sobretudo uma questão de negociação e partilha.

Em suma, espera-se que a maturação do processo de paz e de toda uma Irlanda verdadeiramente multicultural permita uma atitude deveras saudável para com o legado colonial; e há muito quem diga que a verdadeira homenagem ao chorrilho de espoliados, exilados e mártires criado pela ocupação é precisamente celebrar a herança inevitável de uma ilha (pelo menos...) bilingue, capaz de se expressar simultaneamente num irlandês cada vez mais ressuscitado e numa língua inglesa infinitamente mais rica com o contributo daqueles a quem outrora chamou vítimas...


«England will never be civilized until she has added Utopia to her dominions. There is more than one of her colonies that she might with advantage surrender for so fair a land.» (4)

E o que tem, afinal, o Oscar Wilde a ver com isto tudo? Muito. Porque em todos os momentos em que se pode falar de pós-colonialismo na Irlanda ele é incontornável, quer seja enquanto personagem histórica, quer através das suas obras literárias. Aliás, a relação entre Wilde e a teoria pós-colonial é um dos exemplos da simbiose entre literatura e crítica, porque o seu estatuto de irlandês que conquista de modo fulminante a língua inglesa (e a jogar ao ataque em casa do inimigo) é um dos argumentos de base de Inventing Ireland, e obras como The Picture Of Dorian Gray, The Importance of Being Earnest ou The Happy Prince & Other Tales foram granjeadas com novas interpretações à luz das teorias que o livro de Declan Kiberd tanto ajudou a cimentar na crítica irlandesa. Sobretudo, a capacidade de se manterem actuais dos textos de Wilde e a simbologia de que o autor se foi investindo a partir dos anos oitenta permitem que ele seja constantemente citado como um dos modelos a ter em conta na construção de uma Irlanda moderna, progressista e inclusiva.

Nascido em Dublin uns anos antes e filho de fervorosos nacionalistas, o protestante e republicano Wilde chegou a Oxford em 1874. E desde cedo se empenhou em construir para si uma identidade cosmopolita e urbana, aparentemente ultra-britânica — que utilizou, pelo menos no auge da sua popularidade, para subverter por dentro os postulados mais puros da sociedade victoriana, incluindo a noção de uma identidade nacional rígida. Seria ridículo reduzir toda a produção literária de Wilde a um ataque muito subtil mas tremendo ao colonialismo britânico na Irlanda — a subversão dos seus escritos vai muito mais além. Mas é difícil ignorar, por um lado, que Oscar Wilde sempre se assumiu como irlandês, republicano e socialista e que existem nos seus textos detalhes de influência nitidamente irlandesa (por exemplo, envelhecimento súbito de Dorian Gray ao destruir o espelho é semelhante ao que acontece quando Oisín, personagem da mitologia celta, volta a pisar o solo após 300 anos em Tir na nÓg, a terra da juventude); e por outro, que o facto de possuir uma visão do outro lado do império sempre o transformou num outsider e terá porventura moldado o seu pensamento adverso aos binómios fáceis e totalitários tão do agrado da Inglaterra victoriana. Não deixa de ser significativo que Wilde se tenha empenhado em dar voz à Irlanda, em trabalhar em edições pela emancipação das mulheres, e em escrever contos infantis com grandes influências da tradição oral. A implicação política é clara quando se têm em conta que para a moral vigente no império britânico na altura mulheres, crianças e irlandeses não possuíam as capacidades necessárias para se auto-governarem.

É comum, porém, acusar Wilde de defender um estatuto absolutamente independente da arte, que o impossibilitaria de ser adoptado para a claque do pós-colonialismo. Mas, mais uma vez, a crítica pós-colonialista tem demonstrado que o que Wilde defendia era um estatuto independente da arte... face ao totalitarismo do sistema político (imperial). Se a arte é a expressão máxima do indivíduo, defender a sua independência implica necessariamente defender um sistema em que nenhum indivíduo é mais individuo que outro. E se se diz aos quatro ventos que «life imitates art far more than art imitates art»(5), é inevitável acreditar-se que a arte tem o potencial de transformar o mundo...

Para um escritor, a arma natural nessa transformação é a linguagem. E Oscar Wilde tornou-se exímio num dos modelos mais devastadores: o paradoxo. Todos os seus livros estão pejados de afirmações como «I can resist everything except temptation»(6), em que o significado transcende a relação entre as premissas e depende da subjectividade e raciocínio do leitor/espectador enquanto ser interpretativo. Ao pôr em causa as crenças convencionais, tanto no significado como nos mecanismos que o tornam possível, e ao neutralizar a semântica fácil dos binómios, o paradoxo é um dos recursos pós-colonialistas preferidos de Oscar Wilde.
Em termos concretos, é nas peças, e sobretudo em The Importance of Being Earnest, que Oscar Wilde melhor é lido à luz do pós-colonialismo. Temas tão familiares como a necessidade de inventar um passado (Lady Bracknell afirma que se a natureza não nos dota de um pai decente, então há que inventá-lo), de criar um duplo para expressar a identidade (Bunbury e Ernest), de ancorar a realidade na ficção (Cecily e Gwendolen apaixonam-se pela ficção de Ernest, não por Jack ou Algy), ou de subverter os papéis tradicionais (Gwendolen congratula o pai por se ter apercebido que o verdadeiro lugar do homem é em casa, deixando das lides públicas às mulheres) são a substância da peça. E embora já poucos contestem que as peças de Wilde levaram as audiências inglesas a rirem-se às gargalhadas de si próprias, não deixa de ser claro que não é apenas a imbecilidade inglesa que é parodiada. Pode-se ler nestas peças uma espécie de manifesto para o que a Irlanda deveria aspirar a ser — uma terra que se vai imaginando, e não um mero armazém de ideias feitas. No fundo, a literatura inglesa deu a Wilde a máscara de que ele necessitava para representar a Irlanda da qual queria fazer parte. Ao não optar por representar uma Irlanda degradada, mas por a inventar com contornos utópicos, Wilde mata dois coelhos numa só cajadada. Porque para Wilde a empresa imperialista não se limitou a espalhar sofrimento pelo mundo, mas corrompeu igualmente a sociedade britânica no seu âmago.

Nada disto teria qualquer relevância, política ou literária, se o espólio artístico de Wilde fosse um mero mausoléu de subversão centenária, circunscrita a uma realidade colonial específica. Mas se nos anos 80 Morrissey se encarregou de elevar Wilde ao estatuto de ícone pop e contribuiu para a sua transformação em símbolo da causa LGBT, os anos 90 assistiram a um boom de merchandising à volta de Oscar Wilde: t-shirts, canecas, pins e mil e um artefactos foram produzidos ostentado as frases mais emblemáticas do autor. Embora tenham chovido críticas contra a aparente «domesticação» da carga satírica de alguns dos aforismos mais badalados, a verdade é que é no mínimo questionável que a divulgação reduza de forma significativa o carácter subversivo da linguagem wildeana. Até porque muitas das suas peças foram então repostas, em encenações contemporâneas que optaram com sucesso pela actualização do cenário sem desvirtuar a discurso. Em 1997, por exemplo, a companhia KAOS reconstruiu The Importance of Being Earnest à luz da Inglaterra pós-tatcheriana.

Diálogos como:

LADY BRACKNELL [sternly]: ... What are your politics?
JACK: Well, I’m afraid I really have none. I am a Liberal Unionist.
LADY BRACKNELL: Oh, they count as Tories (...).

passaram a:

LADY BRACKNELL [sternly]: ... What are your politics?
JACK: Well, I’m afraid I really have none. I am New Labour.
LADY BRACKNELL: Oh, they count as Tories (...).

Vemos assim que é possível subverter o que é subversivo, sem no entanto perder de vista a carga subversiva original — exercício a que nem todos os textos se prestam.

Em suma, só faz sentido divagar sobre Oscar Wilde numa perspectiva pós-colonialista porque ele continua a ser lido com prazer e significado (e não só nos meios académicos). E o significado é, felizmente, como o pós-colonialismo: há-o para todos os gostos. Fica aqui uma leitura possível, apenas isso. Uma que acredita que se a utopia e a imaginação derrotam impérios, também têm de ter utilidade a construir liberdades (numa Irlanda unificada ou noutro sítio qualquer): «A map of the world that does not include Utopia is not worth even glancing at, for it leaves out the one country at which Humanity is always landing. And when humanity lands there, it looks out, and, seeing a better country, sets sail. Progress is the realization of Utopias.»(7)
notas:

1 — Wilde, Oscar, The Critic as Artist (1891)
2 — Eagleton (1998:25)
3 — Wilde, Oscar, citado por (Kiberd: 1996:35)
4 — Wilde, Oscar, The Critic as Artist (1891)
5 — Wilde, Oscar, The Decay of Lying (1889)
6 — Wilde, Oscar, Lady Windermere’s Fan (1893)
7 — Wilde, Oscat, The Soul of Man Under Socialism (1895)
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