A CANÇÃO DE HARROW
Adriano Moreira - Professor Universitário
No intervalo das duas guerras mundiais, quando a conjuntura mundial estava enquadrada pela Conferência da Paz de Paris e pelo Tratado de Versalhes, Churchill dedicou-se a elaborar algumas biografias que reuniu em volume de grande circulação, e o seu motivo principal, que expressamente anuncia, foi este: cada geração há-de sempre cantar convicta a Canção de Harrow - "No passado, que gigantes admiráveis".
Esta invocação não foi necessariamente inspirada por desconforto causado pela mediocridade da época, que lhe terá despertado a meditação histórica, mas não é de excluir que agora seja essa a circunstância desta entrada no novo milénio, a qual leva a recordar o sentimento que lhe despertou o interesse "sobre grandes homens" da gesta imperial.
Entre os seleccionados para a galeria dos modelos inspiradores do exemplo e da grandeza, encontra-se o famoso Lawrence da Arábia, que não foi um simples soldado cedo retirado do quadro dos oficiais para voltar, como que anónimo e com diferente nome, sem graduação, às fileiras. A sua curta vida (1888-1935) foi, entre várias actividades e a partir da educação em Oxford, dedicada à história militar e à arqueologia, aprender árabe, a traduzir a Odisseia.
Mas aquilo que o notabilizou foi, como oficial do exército britânico, a acção de apoio ao nacionalismo dos árabes que assumiram a luta contra o Império Turco durante a primeira guerra mundial. De tal modo se afeiçoou e identificou com os povos que lutaram pelo fim da submissão aos otomanos que, mesmo na Europa, impressionou Churchill ao encontrá-lo em Paris depois da paz, assumindo a imagem dos árabes: "usava sua roupa árabe, e toda a magnificência do seu semblante se destacava.
A graciosidade dos seus modos; a precisão de suas opiniões; o alcance e qualidade da sua conversação: tudo parecia realçado a um grau notável pelo traje magnífico e pela cobertura elegante na cabeça." E todavia este homem, que ganhara a confiança dos árabes, que animara a sua revolta, que imaginou e dirigiu as operações militares que ajudaram a liquidar o império que os submetia, não resistiu ao desgosto causado pela quebra das promessas que o seu governo avalizara em relação ao futuro estatuto de povos libertados que lhes anunciara.
Recusou a ordem do Banho, mudou de identidade, serviu como simples mecânico a RAF na Índia, fez por ser esquecido e talvez por esquecer. Este apagamento e fuga foi uma surpreendente afirmação de dignidade e revolta, da qual o biógrafo, que o tivera como colaborador no Ministério das Colónias, diz o seguinte: "Tudo é intenso, individual, espontâneo - e, mesmo assim, em condições que parecem impedir a presença humana.
No centro, um cérebro, uma alma, uma força de vontade. Um épico, um prodígio, uma lenda de tormento e, no coração de tudo isto - um Homem." Das ambições colonialistas de então, da partilha dos territórios e povos ao sabor dos projectos dos vencedores da guerra de 1914-1918, com inteiro abandono das promessas feitas e às quais Lawrence dera credibilidade, derivam muitas das causas que determinam o drama do Médio Oriente, designadamente o desastre do Líbano, o equívoco do Iraque, a instabilidade da Síria, a tragédia da Palestina, e assim por diante.
Tudo mais do que razões para cantar a Canção de Harrow que inspirou Churchill, porque a mediocridade das lideranças não pode ser excluída do conjunto das causas que instalaram naquela região um perigo agudo de conflito implacável.
Sobretudo a evidente e frequente distância entre os propósitos anunciados e as contraditórias políticas continuadas, o sinuoso e confuso processo que, desde a originária intervenção programática da ONU até à realidade catastrófica em que se traduzem as relações do Estado de Israel com a indefinida situação da Palestina, dificilmente deixam esquecer a experiência e o drama de Lawrence da Arábia.
Existem outros factos que fazem parte dessa memória, a recomendar que esta iniciativa da cimeira UE-África seja dominada pela autenticidade de propósitos e compromissos.