Cogito, ergo sun
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| Assunto: Musil - O homem sem qualidades I e II Seg Abr 21, 2008 5:39 am | |
| O lugar do pensamento Esta é, desde já, uma das edições mais importantes entre todas as que ocorrerão em Portugal no decurso deste ano. Os dois volumes que a Dom Quixote acaba de fazer chegar às livrarias constituem, no nosso país, a primeira versão completa, traduzida directamente do alemão, do incompleto romance musiliano. João Barrento, o responsável pela presente versão de Der Mann ohne Eigenschaften, referiu ter andado três anos à volta do texto, o que até nem é muito, sobretudo se tivermos em conta que, para o autor, o romance ocupou bem mais de dez; começou a ser publicado em 1930 e representou um projecto em trabalho permanente até à morte de Musil, em 1942. Lembro­‑me bem da leitura que dele fiz em meados dos anos noventa, utilizando a versão da Livros do Brasil, agora tão denegrida, mas que serviu a muitos leitores para descobrirem Musil em português. Recordo ainda melhor a releitura que fiz de várias cenas, em diversas ocasiões, por vezes ao acaso, outras vezes a propósito de algum ensaio que então iria escrever, e de me parecer que o texto se tornava ainda mais claro e lapidar nesses momentos. A importância de O Homem sem Qualidades para uma modernidade literária marcada pelo questionamento e mesmo pela sabotagem da organização que poderíamos chamar clássica da linguagem não parece tão visível como no caso de outros romances (como Ulysses, por exemplo), mas a verdade é que o início se constitui desde logo como o oposto do que tradicionalmente seria o começo de uma narrativa, precisamente por anunciar que nada acontece. Ao mesmo tempo, a descrição parcelar das condições atmosféricas, no aparente intuito de localizar a acção no tempo, indicia a impossibilidade de apreender a totalidade, o que é uma das características mais assinaláveis da modernidade. Não surpreende, portanto, que o romance questione o modelo oitocentista da narrativa, não só porque se baseia, em grande medida, em diálogos reflexivos e em digressões que servem fundamentalmente para prolongar o que é ensaiado nas falas das personagens, mas também porque a ironia se constitui como o próprio modelo estrutural do livro. Esta questão pode ser mais facilmente compreendida se recorrermos a uma cena em que Ulrich, o protagonista, é obrigado a interromper uma série de importantes reflexões por ter chegado ao seu local de destino. O que Musil sugere aí é que o lugar do pensamento no nosso tempo não é mais do que o percurso entre dois espaços, ou seja, o que sobra da acção. Assim, a ironia vira­‑se contra a obra que a funda e impede que esta se tome demasiado a sério, abrindo espaço para a contingência, para a possibilidade, em suma, para o acaso. posted by João Paulo Sousa at 12:22 AM links to this post Para quem gosta de ler, a não perder. Tradução primorosa de Barrento. Uma obra de referência para ler sempre. Tipo Bíblia. De frenta para trás, vice versa ou pelo meioo..... | |
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